sábado, 15 de junho de 2013

Por Que Morrer?
Por Débora Diniz*
"Porque a vida para mim neste estado não é digna". Essa foi a justificativa de Ramón Sampedro, personagem do filme Mar Adentro, à demanda judicial pelo direito a morrer assistido. O tema da eutanásia e do direito à morte digna está na pauta de debates internacionais não apenas pela batalha judicial em torno de Terri Schiavo, a norte-americana que teve o tubo de alimentação retirado por decisão judicial, mas especialmente pelo crescente envelhecimento da população. Os anos conquistados pelo processo civilizatório e o progresso da medicina trouxeram para o centro das discussões éticas a pergunta de como e até quando queremos viver. E mais importante ainda: se temos o direito de deliberar sobre nossa própria morte.
Diferentemente da medicina nazista, em que a eutanásia foi compreendida como uma prática de extermínio de pessoas indesejáveis, o debate contemporâneo sobre o direito de morrer é fundamentado em premissas de direitos humanos. Não se discute quem deve ou não viver, se há ou não doenças que justifiquem a eutanásia, mas sim se as pessoas devem ou não ser livres para decidir sob quais condições a experiência da vida é intolerável e a morte é desejada. Eutanásia como o exercício de um direito humano fundamental é resultado de uma deliberação estritamente individual sobre o sentido da vida e da morte. Nesse contexto, eutanásia não é uma recomendação médica ou uma imposição do Estado, mas um ato de escolha privado pautado por premissas éticas, religiosas ou filosóficas sobre a existência humana.
O direito a se manter vivo é, certamente, um dos direitos mais fundamentais que possuímos. O princípio ético de que a vida humana é um bem sagrado e que, portanto, deve ser protegido por legislações de um Estado laico faz parte de nosso consenso moral sobreposto. Diferentes religiões e convicções morais sustentam o direito à vida como um princípio ético fundamental ao nosso ordenamento social. Discorda-se é sobre a santidade da vida humana, ou seja, sobre sua intocabilidade. Afirmar a sacralidade da vida humana não significa santificá-la, isto é, impedir que se possa deliberar sobre como e até quando queremos nos manter vivos. Para muitas pessoas, como é o caso do personagem principal do filme "Mar Adentro", o desejo de se manter vivo passa pela capacidade de viver a vida. Ou pela intensidade do desejo de não mais ser mantido vivo.
Exatamente por ser uma escolha individual que não há porque se temer a legalização da eutanásia. Um Estado democrático assentado na razão pública reconhece o direito de estar e de se manter vivo como um dos mais fundamentais. Mas o mesmo Estado não deve transformar o direito no dever de se manter vivo. Ninguém deve ser obrigado a viver, assim como ninguém pode ter sua vida eliminada contra sua vontade. Há experiências de doenças, de sofrimento intenso, quadros clínicos irreversíveis que eliminam o prazer e o sentido da vida para algumas pessoas. A absoluta falta de desejo pela vida faz com que algumas pessoas prefiram morrer a sobreviver em condições que consideram indignas, como foi o caso de Ramón e de tantos outros personagens ficcionais ou da vida real que necessitaram expor suas histórias de sofrimento em longos itinerários judiciais para garantir o direito a morrer dignamente.
Mas afirmar que há pessoas que consideram suas vidas indignas não significa que a vida de outras pessoas em condições semelhantes seja, por analogia, também indigna. A avaliação sobre como viver a vida e como qualificá-la é estritamente individual e qualquer tentativa de estabelecer critérios universais é um ato arbitrário e autoritário de julgamento moral. O fato de vivermos em uma sociedade plural, rica em crenças e valores religiosos, não permite que se reconheça um sentido único para a vida ou para morte. Assim como temos diferentes noções de bem e de felicidade, temos diferentes formas de definir e encarar a experiência da morte. Um Estado laico e plural, ao mesmo tempo em que reconhece a centralidade do direito a se manter vivo, deve também reconhecer o direito à morte digna.
Em alguns casos, morrer dignamente pressupõe o auxílio de outra pessoa, em geral um profissional de saúde. Esse auxílio à morte não deve ser qualificado como homicídio, mas assim como outros atos médicos de atenção à pessoa doente, também um ato de cuidado. Cuidar das pessoas, inclusive auxiliando-as a morrer, é um dos maiores exemplos da virtude humana da solidariedade. Somos solidários não quando promovemos nossas crenças morais, mas quando somos capazes de nos aproximar de crenças diversas das nossas, garantindo e promovendo o seu exercício. Indiferente à crença individual de cada um de nós, o direito à morte digna é um sinal de um Estado solidário, plural e laico que reconhece a diversidade moral de seus cidadãos.

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